Depois de O Livro do Boni li Dercy de Cabo a Rabo, livro que deu origem a minissérie.
Dentre as passagens mais interessantes para nós, adoradores de TV, está a fase em que foi censurada. E demitida.
A leitura me fez visualizar Dercy como o Ratinho, aquele da década de noventa, fenômeno de audiência e de sensacionalismo. Mais um numa lista que inclui Flavio Cavalcanti, o “Homem do Sapato Branco”, Chacrinha, Datena e … Dercy.
Em sua biografia ela não oculta essa parte de sua trajetória e nem tenta diminuir algum detalhe. Diz que pintava e bordava..
Mas era época de censura, tudo era proibido.
“Eles criavam tanto caso que chegaram ao cúmulo de proibir que a câmera mostrasse minhas mãos, argumentando que os meus gestos eram obscenos. Houve uma hora em que o Manga resolveu me botar sentada numa cadeira contando histórias infantis pró auditório e deu ordem aos câmeras pra só me focalizarem da cintura pra cima. Contei muitas. Chapeuzinho Vermelho, A Gata Borralheira, A Bela Adormecida, o escambau. Não havia roteiro, e foi a maior burrice da censura proibir que mostrassem minhas mãos. Eu tinha muitos outros recursos para fazer o público rir: voz, entonação, intenção e, principalmente, imaginação. O auditório mijava de rir da versão que eu dava a essas histórias, e, como o riso é contagiante, o telespectador em casa acabava rindo também.”
Isso ainda na TV Excelsior.
Foi para a TV Rio, passagem que resume como uma cagada em sua vida. Se lembram na minissérie que ela se fingiu de doente para o Boni? Pois é, foi pra que não levasse o contrato com a emissora adiante por estar “impossibilitada”. Disse que partiu seu coração fazer isso, mas fez.
“Montar uma comédia na televisão não é problema quando a emissora tem recursos, mas, quando não tem, é uma merda. Já tinha apresentado A Dama das Camélias na TV Excelsior, mas na TV Rio foi a maior luta. Precisava de gelo-seco pra fazer fumaça. Cadê a máquina de gelo-seco? Não tinha.”
A falta de recursos foi um dos motivos.
Dercy voltou para a Excelsior mas a crise da emissora estava se agravando e seu salário era muito alto. Assinou com a Globo.
E aí está uma das passagens mais emocionantes de sua biografia por ela descreve a emissora como uma filha, uma filha que ajudou a criar.
Como na TV Rio, as dificuldades eram grandes, mas todos se uniram para colocar a TV no ar, davam seu suor.
Dercy chegou a apresentar um programa ao vivo enquanto a Globo pegava fogo, não deixou a peteca cair. Era campeã de audiência, mesmo as custas de sensacinalismo.
“A gente ia fazer a TV Globo. Era disso que se tratava. Fazer uma emissora de televisão. Arregacei as mangas e entrei de cabeça, entrei querendo trabalhar e éramos um time só.”
Seu programa era longo e, para evitar muitas cagadas, como define, tinha alguém no ponto lhe soprando coisas, pois tinha muitos convidados e, não tendo terminado o primário, era necessário para que diminuísse o número de foras.
Dentre as “cagadas históricas”, ter falado que Coca-Cola era ruim, um dos anunciantes da Globo, e ter confundido BNH com BCG.
Esse era o Dercy de Verdade, popularzão. No Dercy Espetacular ela fazia dramaturgia.
Ela foi a precursora da “porta da Esperança” do Silvio Santos. Já na década de 60 o povo escrevia pedindo coisas e ela fazia a entrega no ar. Ajudava até políticos, especialmente o prefeito de …, sua cidade natal.
“Dercy de Verdade tinha de tudo, até quadro “mundo cão”, que hoje todo mundo faz e dá o maior Ibope porque gente fodida se sente menos fodida quando descobre que tem gente mais fodida do que ela.”
O programa chegou a ter 70% de audiência e 90% dos televisores ligados. E o governo estava de olho, por isso proibiram o quadro em que ela ajudava o povo. Ainda assim a audiência continuou subindo.
Depois veio a história da contenção de verba.
E ela descobriu que isso estava acontecendo porque… o programa iria terminar. E ela não acreditava, justamente por ter toda essa audiência.
A Globo estava tentando melhorar sua programação, agora que já tinha audiência, e sofria pressões do governo.
– “Mas Boni, eu dou 70 de Ibope, 90% dos aparelhos ligados!”
– “Nem que desse 100. Sinto muito, Dercy, mas estamos sendo forçados a mudar asdiretrizes da emissora.”
O último programa que fiz me mostrava, ao final, surgindo no palco carregando uma mala na mão, descendo as escadas e caminhando pelo corredor do auditório vazio, e depois saindo porta afora até desaparecer da vista da câmera e do espectador. Assim foi minha despedida, assim foi meu adeus a meu público, à minha platéia, milhões e milhões de pessoas que me assistiam todas as semanas, porque eu oferecia no ar o que elas queriam: tragédia e humor, gente bonita e gente feia, o bom e o ruim, esplendor e miséria. Dercy de Verdade era a cara do Brasil.