Ao justificar o abandono do estilo que o consagrou, conhecido como “realismo fantástico”, o autor Aguinaldo Silva disse, certa vez, que tal recurso já não fazia sentido, tendo em vista que a realidade estava mais absurda que a ficção. Por conta disso, deixou de brindar o público da faixa das nove da emissora com suas cidadezinhas malucas, repletas de personagens curiosos e apaixonantes. Porto dos Milagres, A Indomada, Fera Ferida, Pedra Sobre Pedra, entre outras, ficaram no passado e na memória afetiva do público.
O realismo fantástico é um recurso dramatúrgico consagrado por Dias Gomes e “herdado” por Aguinaldo Silva a partir de Roque Santeiro, a mais famosa novela da história da teledramaturgia nacional. E se Aguinaldo Silva continuou o legado de Gomes, Ricardo Linhares acabou por assumir a batuta do autor de Fina Estampa. Linhares foi coautor de vários dos trabalhos de Silva e, sozinho, flertou com o realismo fantástico em suas novelas Meu Bem Querer e Agora É que São Elas. Após esta última, no entanto, o novelista se uniu a Gilberto Braga e também passou a se dedicar às tramas urbanas e realistas. Sendo assim, o realismo fantástico parecia ter caído em total desuso.
Mas os fãs do gênero não contavam que, a partir de 2011, a Globo passaria a dedicar sua faixa das onze às releituras de folhetins clássicos. A boa receptividade das novas e compactas versões de O Astro e Gabriela abriu caminho para que mais uma trama de sucesso do passado fosse resgatada. Saramandaia, talvez o expoente máximo do realismo fantástico da obra de Dias Gomes, foi a novela escolhida para dar sequência à faixa de “novelas das onze”. Segundo Ricardo Linhares, a ideia de resgatar Saramandaia é antiga, mas não havia espaço para tal projeto. A criação da novela das onze, assim, foi essencial para que fosse possível o retorno dos antológicos personagens criados por Dias Gomes.
Afinal, mesmo quem não era nascido nos anos 1970, período em que foi ao ar a primeira versão de Saramandaia, já ouviu falar em algum dos personagens da obra. Talvez a mais famosa seja mesmo Dona Redonda, a voluptuosa senhora vivida por Wilza Carla, que explodiu de tanto comer. A cena de sua explosão, vira e mexe, é relembrada no Vídeo Show, assim como a do voo de João Gibão (Juca de Oliveira), e algumas poucas outras sequências que restaram da novela original.
Dito tudo isto, parecem claros os diversos desafios de se refazer Saramandaia. Além do risco de se mexer num clássico, ponto que o blog sempre analisa quando um remake está no ar, outro grande desafio da Saramandaia atual é provar que o realismo fantástico ainda pode fazer algum sentido. No passado, o recurso funcionava como uma metáfora à falta de liberdade vivida dos anos de ditadura militar. Mas em 2013, qual o sentido de se fazer uma história repleta de tipos malucos e disfuncionais?
O que se viu nesta primeira semana de Saramandaia mostrou que o gênero faz, sim, todo o sentido. Ricardo Linhares foi feliz na atualização do enredo, que agora soa como uma sátira política. Não faltaram referências ao cenário político mundial entre as discussões da população de Bole-Bole, dividida e às voltas com um plebiscito para decidirem se a cidade permanece com este nome ou muda para Saramandaia. O mote é mera desculpa para dividir a população da cidadezinha em dois grupos claramente polarizados: de um lado, os conservadores; do outro, os liberais. Os tipos diferenciados que compõem a cidade também propõem uma bem-vinda discussão ao preconceito, a tolerância e a aceitação social. Além disso, Saramandaia estreou num momento feliz, quando suas cenas de manifestação surgem em total consonância com o atual momento do país. Ou seja, o realismo fantástico nunca fez tanto sentido!
Saramandaia, assim, além de resgatar este gênero tão apreciado por amantes de folhetim, ainda dá uma cara nova à ainda recente faixa das onze da Globo. Pela primeira vez, o tom de comédia domina a trama do horário. Saramandaia é colorida e alegre. E os personagens principais já disseram a que vieram na primeira semana. Os protagonistas, Zico Rosado (José Mayer) e Vitória Vilar (Lilia Cabral), estão no centro de um romance mal resolvido do passado, que ressurge quando ela retorna à cidade depois de anos afastada. Ao redor, uma antiga rivalidade familiar. O tema é batido, é verdade, mas sempre funciona. Na ala jovem, João Gibão (Sérgio Guizé, excelente revelação) sofre por ser “diferente” (é corcunda) e não conseguir consumar seu amor por Marcina (Chandelly Braz). Como em Bole-Bole tudo acontece, os quatro têm suas peculiaridades: Zico expele formigas pelo nariz, Vitória se derrete por amor, João Gibão esconde um par de asas na corcunda e Marcina fica em brasa quando namora.
Outros tipos bizarros chamaram a atenção nesta primeira semana. A nova Dona Redonda roubou a cena, com sua rabugice e sua comilança voraz. Vera Holtz está ótima no papel e sua maquiagem pesada (sem trocadilhos) não chega a comprometer, mas será que não seria mais interessante que uma atriz verdadeiramente gordinha vivesse a personagem? Os efeitos especiais parecem que serão a grande vedete da trama, vide a cena de transformação do professor Aristóbulo (Gabriel Braga Nunes) em lobisomem, que foi ao ar na sexta, 28.
Saramandaia, no geral, agradou. Ricardo Linhares foi extremamente feliz na adaptação e o texto está impecável. O elenco é dos mais competentes, reunindo medalhões do porte de Tarcisio Meira (Tibério), Aracy Balabanian Dona Pupu), Renata Sorrah (Leocádia), Débora Bloch (Risoleta), Matheus Nachtergaele (Seu Encolheu) e Fernanda Montenegro (Dona Candinha). A direção de Denise Saraceni e Fabricio Mamberti deveria ser mais ousada, afinal, tanto o texto quanto o horário permitem fugir do lugar-comum. Por enquanto, está apenas correta. Saramandaia arranca gargalhadas, provoca reflexão e é um bom entretenimento de fim de noite.
Por André San
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Mesmo c/ os recursos dos efeitos especiais,acho que "Saramandaia" ainda não alcançou e sucesso esperado como foi em 1976.Talvez seja a falta de grandes atores como era na época da primeira exibição.